terça-feira, 1 de novembro de 2011

NÃO FOI NO GRITO - 020


O BRASIL de novembro de 1811 e a

MESA de CONSCIÊNCIA e ORDENS.





A MESA da CONSCIÊNCIA e das ORDENS funcionou ao longo de três séculos em Portugal. Ela foi instituída por Dom João III, em 1532, e extinta pelo Regime Liberal, em 16 e agosto de 1833. Além de um conselho de assuntos atinentes à “Consciência do Rei”, ela administrava instituições da corte lusitana, como as antigas “Ordens” Medievais e as universidades, com os seus respectivos bens e recursos.

Fig. 01 – Conselheiros do reino  e representantes de ORDENS LUSAS no Rio de Janeiro–
Gravura de Jean Baptiste Debret (1768-1848)


Este conselho real foi criado um pouco antes da instalação oficial do Tribunal da Inquisição, no dia 23 de maio de 1536, em Évora.  Em novembro de 2011, uma minoria de brasileiros sabe de sua existência. Certamente ninguém sabe nomear um dos seus integrantes ou uma das suas obras. Na prática estes personagens blindavam o rei, criando ao seu redor um halo de mistérios e de sagrado. Assim os seus membros constituíam um muro humano intransponível ao povo para contato ou acesso ao seu soberano.

Fig. 02 – Uma sessão da INQUISIÇÂO 
Alain Menesson MALLET 1630-1706 - Inquisição em Portugal - gravura -. 1685

Estes segredos, os expedientes e os muros são evidenciados no texto do CORREIO BRAZILIENSE de nº 42 - novembro de 1811 - pp. 660-661.

“o terrível expediente de se abrigarem os ministros por detraz do throno, para occultar o que fazem mal feito com a capa do Soberano; a impossibilidade em que estaõ os queixosos de fazer legalmente, e sem risco, publicos os males que os affligem; he a principal origem deste encadeamento de erros, e de crimes, que véxam continuadamente os governados, e que deixam aos opprimidos sem recurso”.



De outro lado é necessário admitir que a MESA de CONSCIÊNCIA - como o TRIBUNAL da INQUISIÇÃO - faz parte do processo da constituição de um ESTADO, nas suas mais variadas ideologias e interesses. Numa concepção contratual, o cidadão renuncia a praticar, com suas próprias mãos e meios, a violência individual, delegando esta prática ao Estado que a exerce nos parâmetros jurídicos do “Espírito das Leis” de Montesquieu. Para tanto os governos dos Estados atuais continuam a se cercar dos mais variados conselhos, além de seus ministérios e suas secretarias, que realizam, sob outros nomes, com objetivos semelhantes à Mesa de Consciência e Ordens de Portugal.

FEITLER, Bruno Nas Malhas da Consciência. Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo : Alameda Casa Editorial , 2007 -  296 p.  ISBN: 9788598325477.
Fig. 03 – A cidade, as leis do reino e o urbano precedem a natureza, o fato e o rural gerando um controle estatal vindo de cima para baixo. A lógica natural seria que o poder se originasse na base e depois constituísse um sistema coerente de fluxo do poder em todas as direções

O linchamento, a execução sumária, por encomenda de quem possui dinheiro e poder e entre iguais o olho pelo olho, eram práticas que se desenvolveram e se desenvolvem ainda hoje. Na ausência de qualquer contrato público multiplicam-se e ganham força apesar de todas estas providências estatais. Os Estados contemporâneos não conseguem evitar assassinatos, violências e arbitrariedades, por mais poderosos e por melhor equipados que estejam. Arbitrariedades, violências e assassinatos ocorrem por fora do seu poder e do pleno funcionamento das suas instituições.  Basta acompanhar as violências sumárias, sem estatísticas, registros e calados nos ruídos das Guerras do Iraque e da Afeganistão entre tantas outras para ter prova desta impotência. As torturas, execuções de crimes encomendados, no Brasil do século XXI, produzem certamente mais agonias, dores do que todas as torturas públicas aplicadas em consequência do Tribunal da Inquisição ou da Mesa de Consciência.

Geographic Magazine em  19.03.2008
Fig. 04 – A invasão do Iraque gerou o colapso das instituições e caos cultural, abrindo as suas portas para saques e destruições do patrimônio da humanidade cujas perdas ainda não foram contabilizadas e são irreparáveis.  A ausência do Estado tanto do invasor como do invadido o caminho para a barbárie de ambos os lados

Os abusos da prisão de Abu Ghraib do Iraque, ou o assassinato da juíza Patrícia Lourival Acioli em Niterói,  são ínfimas e pálidas amostras da impotência do Estado contemporâneo cumprir a risca o contrato com os seus cidadãos.Esta impotência é endêmica e se propaga com facções paramilitares ou ao estilo do bando do Lampião.  Facções e bandos que constituem pirâmides de poderes paralelos aos poderes legítimos e contratados com o Estado. Facções e bandos, em franco desafio e ao arrepio da lei, constituem uma justiça espúria e, pela qual, o mais forte e ardiloso, é quem a distribui e aplica.


Fig. 05 – Na decomposição do ESTADO NACIONAL todo e qualquer um  sente-se autorizado a fazer a justiça com as próprias mãos e meios,mesmo que sejam simbólicos.

 O cúmulo da desgraça acontece quando estas facções e bandos influenciam o poder deste ESTADO, de uma forma subliminar ou determinante, ou, mesmo, se apropriam dele. O objeto de sua cobiça é o poder do Leviatã que é Estado contemporâneo. Este, cego e surdo, abre caminho, por meio da força e das suas ferramentas, para satisfazer interesses inconfessáveis destas facções e bandos.

Fig. 06 – O quadroO COLOSSOtradicionalmente atribuído a  Francisco José de GOYA y LUCIENTES (1746-1828) que pode simbolizar o Leviatã ou Estado erguendo-se sobre o povo

Em novembro de 1811 o CORREIO BRAZILIENSE, de nº 42, estava atento à origem e ao perigo desta corrupção do Estado e publicou sobre o título “BRAZIL” nas pp. 659-661, na sua sessão de “Miscelânea” algumas “Reflexões sobre as novidades deste mês  .

Continuando a matéria, que sobre este artigo tractamos no nosso N.° precedente, devemos, antes de passar a diante, lembrar ao Leitor, que os casos particulares que referimos sobre a mà ordem de governo no Brazil, naõ saõ notados nem pelas pessoas que nesses casos representam, nem ainda pela importância dos mesmos successos; mas he necessário, que se particularizem alguns factos, para com elles provar a insufficiencia do systema actual de administração,em procurar ou obter a felicidade dos povos”.

O poder originário possui razão dupla de indignação, ao perceber o logro de ceder a um Estado destes a sua competência de distribuir e aplicar a Justiça. Uma de constatar que os cargos, que concentram o maior número as funções, estão em mãos de ocupantes descuidados, relapsos e ineptos.  Outra, mais grave, ao ter evidências de que a causa do logro, e a origem da corrupção, residem no próprio sistema de poder e que foi mal articulado.

Fig. 07 – A ocupação francesa e o bloqueio continental  da EUROPA em curso em novembro de 1811 

 Os descuidados, os relapsos e os ineptos possuem sempre a desculpa de plantão de que “a culpa é do governo”. A partir de um  ESTADO desta natureza e que distribui estes cargos e estas funções, o cidadão avulso possui provas de que tal sistema caducou e o seu contrato com o Estado não possui mais sentido, senão danoso,  em todas as dimensões morais e físicas. Neste estágio de decomposição e entropia, este sistema é fonte arbitrariedades de toda ordem. A atenção e a ação deste cidadão tornam-se necessárias. Chega a hora de passar para a indignação e exigindo mudanças radicais. Ou a simples e pura destruição deste sistema esclerosado e inútil, senão temerário, perdulário e perigoso.

O alvo de nossa censura tèm sido principalmente os Governadores; porque cabendo a estes homens mais porçaõ de poder, tem mais occasiaõ de commetter abusos, e as suas arbitrariedades saõ de maior conseqüência; porém a maldade do systema naõ se exemplifica sómente nos Governadores. Se nos fosse conveniente inserir todos os factos, que se nos communicam, em explicação do systema que reprovamos, naõ teria o nosso periódico lugar para conter mais cousa alguma; mas he preciso, notar especificadamente, de quando em quando, algum facto, que prove as proposiçoens geraes”.

As arbitrariedades estão expostas em todas as latitudes são mais visíveis naqueles que ocupam o topo deste ESTADO.

Fig. 08 – A  eliminação física da oposição espanhola à ocupação francesa pelo sumário FUZILAMENTO na calada da noite de “03 de maio de !808”   pintura de  268 cm X 347 cm realizada em 1814  por Francisco José de GOYA y LUCIENTES (1746-1828).. Entre o fato e a obra distam seis anos e permitiu ao seu autor rever concepções e apoios. O pintor havia aderido aos franceses e à Razão iluminista, deu-se conta no engano, depois da derrota de Napoleão e sentiu-se constrangido a acompanhar os derrotados na sua retirada para a França onde morreu. Além de suas qualidades estéticas a obra é um testemunho das dúvidas e arrependimento políticos que podem aprisionar uma nação e o Estado que o poder originário projeta construir para si mesmo. Na arte, na política e no esporte não existe possibilidade de pedir desculpas pelos erros e derrotas..



Num Estado colonial escravocrata, não há instituição, moral ou prática, por mais tradicional e correta, que resista à infiltração silenciosa e muda desta corrupção endêmica e tolerada a partir do vértice do sistema.

Certo ouvidor de uma commarca do Brazil, acabou o seu lugar em Novembro de 1807, e tirou do Cofre chamado dos Auzentes onze mil cruzados, e duzentos mil reis; e deixou recibo desta quantia; dizendo que a entregaria em Lisboa na repartição competente ; que he a Meza da Consciência e Ordens: a este tempo passou S. A. R. o Principe Regente para o Brazil, e aquelle ouvidor foi promovido a desembargador de uma Rellaçaõ; e nesse lugar falleceo, sem entregar, nem fallar mais no dinheiro, que tinha recebido ; nem haver quem pudesse perguntar-lhe por elle ; porque a Meza da Consciência em Lisboa, para onde aquelle dinheiro vinha remettido, deixou de ser informada do que se passava no Brazil, e o Governo do Rio de Janeiro naõ tinha meios ordinários de saber quaes eram as quantias que recebia a Meza da Consciencia de Lisboa: assim achando-se o corpo político com duas cabeças, ficavam alguns de seus membros fora de seu governo, e influencia. O thesoureiro dos auzentes, ou cousa que o valha, que tinha assignado a conta daquelle dinheiro remettido, deu parte da remessa a S. A. R. pela meza da Consciência do Rio de Janeiro, e apresentou o recibo em forma; e decide-se, que se confisquem os bens deste homem para pagar os onze mil cruzados, que elle entregou, e deixa-se em paz, e socego, os bens e viuva do ministro que os recebeo, e naõ deu conta delles. Esta ordem da Meza he datada de 19 de Dezembro, de 1810; e a provizaõ hede 2 de Janeiro, 1811. Os nomes, e mais circumstancias ali as achará quem quizer verificar o caso; nós ommíltimas isto, porque, por esta vez, nao julgamos necessário desenterrar os mortos.

Fig. 09 -  O antigo palácio dos Vice Reis do Rio de Janeiro transformado, em 1808, na sede da corte do reino lusitano o  Jean Baptiste Debret (1768-1848)

A emenda de algo novo, sobre um tecido gasto e roto, é desperdício de talento, trabalho e dinheiro. O cúmulo acontece, e chega a ser ridículo, ameaçador e monstruoso, quando se quer enxertar uma cabeça nova e outra antiga, num sistema que tenha por vértice um projeto de um Estado único de uma nação civilizada.

¿Agora, que justificação poderaÕ alegar os Ministros do Brazil em seu favor ; para se desculparem de ter aconselhado a creaçaõ de uma Meza da Consciência no Rio de Janeiro, deixando ficar subsistindo a que havia em Lisboa, sem prescreverem os limites de uma e outra', e sem darem providencias eflicazes, a respeito dos negócios começados pela antiga Meza, e que se podiam, e deviam continuar pela nova?

 Estava reservado para os Ministros do Brazil o novo invento de governar uma monarchia com duas capitaes; ou, quando elles fizeram os seus arranjamentos no Rio de Janeiro, davam ja o Reyno de Portugal por perdido? i Parece que toda a actividade dos Conselheiros se concentra em mandar fazer prizoens arbitrarias, e conceder a cada funecionario publico a maior latitude de arbítrio, que ho compatível com o arbitrio dos que lhe saõ superiores. Quanto ao mais, nada lembra.

Chégou ha alguns mezes a Lisboa do Rio de Janeiro o navio Marialva, pelo qual se esperava no reyno, que viessem despachos para algumas das pessoas, que estaõ empregadas no activo serviço, que a guerra actual exige dellas, á excepçaõ dos tres Condes e alguma commenda, ninguém se achou no reyno, que merecesse algum prêmio; e nem se julgou necessário estimular ao serviço, com o exemplo de remuneraçoens a algums individuos ! Se um descuido desta natureza naõ he, nas circumstancias actuaes, um justo motivo de censura contra os Ministros do Brazil, naõ sabemos, quando o possa haver”.

A lei, ao preceder os fatos, gera um formalismo no qual os cargos e as suas funções encontrem a CULPA de TUDO e de TODOS, no trono do ESTADO. Este formalismo torna-se um expediente fácil para atribuir a corrupção, endêmica e tolerada, a quem apenas sanciona tais leis, além de se constituir num confortável e luxuoso refúgio de descuidados, de procrastinadores e de ineptos.

“Na verdade o terrível expediente de se abrigarem os ministros por detraz do throno, para occultar o que fazem mal feito com a capa do Soberano ; a impossibilidade em que estaõ os queixosos de fazer legalmente, e sem risco, publicos os males que os affligem; he a principal origem deste encadeamento de erros, e de crimes, que véxam continuadamente os governados, e que deixam aos opprimidos sem recurso”..


Fig. 10 –  Coroa da moeda de prata de 400 reis do reino lusitano  cunhada no ano de 1811

Uma MESA da CONSCIÊNCIA e de ORDENS foi um destes atos legais e formais. Ela foi constituída com as melhores intenções e ideal. No entanto desde a sua origem carregou-se de segredos num Estado colonialista e escravocrata. A falta absoluta de transparência e seus sigilos mantiveram acesa a fogueira do terror e da intimidação, mesmo que eles fossem simbólicos. A falta de transparência e os espessos segredos do poder estatal evoluíram para o de arbítrio, ao esbanjo e da corrupção passiva para a ativa.

 Neste estágio, inclusive uma MESA da CONSCIÊNCIA entra na fase aguda e irreversível da entropia inerente à qualquer criação humana. Em novembro de 1811, a MESA de CONSCIÊNCIA e ORDENS chegava às últimas consequências. Enfrentava os resultados mais negativos possíveis desta entropia. Gerava uma crescente aversão originária do frágil poder de uma colônia com três séculos de heteronomia e desmandos. A MESA de CONSCIÊNCIA e ORDENS multiplicava-se em duas. Na sua maléfica metástase prepara-se para fazer mal, tanto no Antigo como no Novo Continente. Nesta maléfica metástase não se reconhece a si mesma. Muito menos é capaz de criar, de implementar e de administrar qualquer projeto. Muito menos de propor e contratar com o seu poder originário, um autêntico projeto civilizatório compensador da violência inerente a um Estado. Violência própria de Estado que, por força de um contrato celebrado com os seus cidadãos, necessita perceber a Verdade, aplicar a sua Vontade na distribuição da Justiça.

FONTE BIBLIOGRÁFICA

FEITLER, Bruno Nas Malhas da Consciência. Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo : Alameda Casa Editorial , 2007 -  296 p.  ISBN: 9788598325477.


FONTES NUMÉRICAS DIGITAIS

MESA de CONSCIENCIA e ORDENS Portugal (1532 – 1833)




INQUISIÇÂO em PORTUGAL



FONTES BIBLIOGRÁFICAS sobre  INQUISIÇÂO


ASSASSINATO da JUIZA PATRÌCIA LOURIVAL ACCIOLI



ABU GHRAIB



Gravura da BATALHA de FUENTES d’ONORO 05.05.1811 C. TURNER




BLOQUEIO FRANCES em 1811



Resumo do “Espírito das Leis” (1748) – CHARLES de MONTESQUIEU (1689 – 1755)

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