sábado, 27 de dezembro de 2014

109 - NÃO FOI no GRITO

O REGIME COLONIAL SILENCIOU VIEIRA
...com os seus próprios argumentos.

“Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes”.
Do “SERMÃO aos PEIXES” de Pe. Antônio VIEIRA  - 1654 – São Luís do Maranhão
Fig. 01., Em muitos aspectos as obras, os pensamentos e a memória do  Padre Antônio VIEIRA pode ser comparada com a temerária aventura do peixe-voador que tenta se equilibrar provisoriamente acima e por fora do Regime Colonial lusitano. Vindo deste regime e um dos seus devotados agentes ele não se conformava com as faltas de luzes, as  injustiças e a cegueira que este mar impunha aos seus habitantes. Na contemporaneidade o desempenho do  peixe-voador pode ser comparado com o deslize do “mouse” sobre a tela do monitor.

NÃO FOI NO GRITO que a retórica, o verbo e os textos do Pe Antônio Vieira desapareceram e foram varridos,  escondidos e dissimulados da memória brasileira. O Regime Colonial lusitano usou o esquecimento, o silêncio e a ignorância  depois de  condenar a voz do pregador, em vida, “ao silêncio obsequioso”. Voz incômoda, desaparecido, em 1697, em Salvador na Bahia. Depois de silenciar física e presencialmente o  Regime Colonial lusitano dedicou-se a apagar a sua memória. Velou e patrulhou silenciosamente para que não circulassem os seus escritos incômodos e muito menos fossem objeto de estudos  e de recomendações.  
Fig. 02. Padre Antônio VIEIRA, nascido no dia 06 de fevereiro de 1608 em Lisboa e faleceu a 18 de julho de 1697 em Salvador (Brasil)

Enquanto vivo Antônio Vieira usou a retórica, as letras e conquistou destaque no púlpito, para materializar as sua mente ativa, brilhante e coerente com a sua realidade. Nesta realidade buscava apoio para gerar METÁFORAS como aquelas das COMPARAÇÕES entre a natureza e as ações dos HOMENS e dos PEIXES.  METÁFORAS que atravessam todo o discurso de Vieira e contribuem para a criação de uma serie de pensamentos materializados em  textos que continuam a se projetar através do tempo. Vieira gerou uma obra coerente por meio da cuidadosa escolha do VERBO ELOQUENTE que chega intacto ao nosso TEMPO devido ao registro impresso. O orador parte do empírico para ancorar esta façanha e fortuna naquilo que todos conhecem em todos os tempos.  Com o seu VERBO ELOQUENTE  Vieira conduz o seu público  para a abstração, ao desconhecido e para a surpresa daquilo que ninguém aguarda.  A surpresa se origina no fato da sua sólida descrição do que todos parecem conhecer e são capazes de ler.
Pieter BRUEGHEL o Velho 1525-1569 - Peixe maior engole o menor
Fig. 03. O Padre Antônio VIEIRA, conhecia a culturas e arte do Flandres. Esta imagem - divulgada em gravuras - é do seu século anterior ao pregador, político e defensor dos mais fracos e inválidos pilhados pelos prepotentes e oportunistas.   

Como intelectual consciente e seguro da perenidade da sua obra não esconde a sua logística, suas estratégias e suas táticas. Na logística evoca aquilo que a maioria de sua audiência havia experimentado algum dia como migrante para o Maranhão como os navios, as águas, os seus habitantes nativos e as rotas marítimas.
Outra cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes
Na estratégia vale-se das METÀFORAS retirados desta experiências tangíveis. Nas táticas surpreende, desarma as mentes mais resistentes e nelas planta palavras memoráveis e que jogam estas inteligências resistentes acima e fora da Natureza e do seu quotidiano numa colônia vigiada e patrulhada. 
Fig. 04. A percepção dos desmandos do regime colonial lusitano pelo Padre Antônio VIEIRA foi duramente exposto e perpetuada nos seus escritos, O seu projeto de um império lusitano, como aquele de Hipólito José da Costa foram liminarmente descartadas por um projeto e um pacto transnacional  corroído por espíritos mesquinhos e incapazes de perceber as suas competências e limites e trabalhar arduamente para trazê-las ao mundo empírico.. Não e suficiente um voluntarismo de pessoas que podem eventualmente serem boas ou más. È necessário um regime que seja sustentado por um projeto e um pacto social, econômico e político justo, bom e belo que galvanize todas as vontades, mentes e sentimentos desta nação imaginada.

Colônia na qual todos sentem, veem e sabem que os fracos, os índios, os escravos e os pobres são vigiados, patrulhados e no final são devorados em cardumes.
“Os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos inteiros”.
Fig. 05. O polvo é o animal que para o Padre Antônio VIEIRA, é o mais traiçoeiro e ameaçador. As palavras do pregador jesuíta relativizam o próprio Judas. Este só sinalizou, mas não prendeu. O polvo engana e prende a sua vítima nos seus tentáculos com ventosas e a devora viva. Para   THOMAS HOBBES DE MALMESBURY (1588-1679) o mítico POLVO GIGANTE do imaginário popular é uma das bases empíricas para criar o seu LEVIATÃ.

A METÁFORA é tanto mais densa ameaçadora e profunda quanto mais insondável é o perigo. Perigo personalizado no POLVO Pelágico, apropriado dos insondáveis repertórios populares dos marinheiros e pintado por Vieira como animal marinho traiçoeiro e mortal para a fauna marinha.
  Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor! Polvo.
Se Judas  Escariotes encontrou desculpas e atenuantes na palavra de Vieira, os traços do comportamento do polvo podiam serem facilmente encontrados nos humanos bem concretos e na sua assistências na igreja.
Fig. 06. O orador sacro explora, com maestria, o imaginário popular que cerca o  polvo. Transposto ao mundo da retórica  pelo Padre Antônio VIEIRA, este  animal torna-se metáfora para o mundo humano muito mais traiçoeiro. Criatura humana capa de prender  as suas vítimas em cardumes   e as prende -  nos seus tentáculos com ventosas - e as devora vivas .

Enquanto o polvo se esconde nos abismo do mar o peixe voador se exibe na superfície e insatisfeito com a sua natureza.
“Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois aves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho”.
Fig. 07. Os rituais antropofágicos dos índios brasileiros são, para o Padre Antônio VIEIRA, menos condenáveis do que as devorações dos civilizados. Estes devoram as suas vítimas vivas, aos cardumes e multidões sem fazer o menor ritual. Rituais antropafágicos sublimados nas cerimônias cristãs e retomado pela cultura brasileira com o MOVIMENTO ANTROPOFÁGICO..

Viera antecipa em três séculos o MOVIMENTO ANTROPOFÁGICO BRASILEIRO ao descrever as comilanças daqueles que comem uns aos outros. Comem vivos aos cardumes e em sacrifício para a sua cobiça ilimitada. Basta apenas farejar uma vítima potencial desta cobiça
“Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido”.
Não só os tapuias devoravam uns ao outros. O colonizador também devorava os seus semelhantes em nome de uma civilização superior e devorava vivo as suas vítimas.
O Regime Colonial lusitano fez de tudo para apagar a memória das denúncias, das revelações e das verdades incômodas do pregador jesuíta. Fácil de apagar - sem gritos, sussurros ou murmúrios - pois poucos sabiam ler. Com a imprensa censurada e com a muralha do “NIHIL OBSTAT” em nome do bispo e da Santa Inquisição raros textos circulavam e eram lidos, meditados e colocados em contraposição ao Regime Colonial. O que valeu a redenção dos textos do pregador foi a circulação em outras culturas e línguas. Previdente este orador confiou o seu pensamento a uma diversidade de mídias além da fala e da encenação retórica.
Na contramão os dissimuladores cobrem o túmulo e as obras deste pensador do período colonial brasileiro com mitos e afirmações generalizantes e que são índices claros de que nunca leram e muito menos entenderam este pensamento. Isto se não criam resenhas nas quais mais confundem, naturalizam e a misturam com todo lixo filosófico do seu próprio tempo. A mentalidade estreita e imediatista destes mediadores improvisados se apropria da palavra do orador e raciocinam “Contentai-vos com a vossa religião  e com a vossa ordem, e não queirais ser político, pois sois jesuíta”. 
Pieter BRUEGHEL o Velho 1525-1569 - Peixe maior engole o menor - Detalhe
Fig. 08. A atualidade do Padre Antônio VIEIRA permanece na medida em que ele aponta a permanente e continuada disposição humana em exercer o seu poder de domínio de apropriação e de transformação do que lhe cai sobre o olhar, mente e mãos. , A  lógica huna é lei e o seu interesse não conhece competências e limites.

A extinção da ordem jesuíta, a sua execração e a expulsão da Europa dos seus membros e das suas colônias, jogavam contra a memória do Pe. Antônio Vieira. Não havia argumentos válidos contra a Igreja e o Estado unidos e menos dignos de acolhimento, consideração e separação do trigo do joio. Os jesuítas recolhidos à Rússia, de Catarina a Grande,  tiveram imensas dificuldades para preservar e fazer retornar o seu patrimônio simbólico para a Cultura Ocidental europeia. Este renascimento jesuíta foi lento, inseguro e cheio de reações adversas apesar de muitos revolucionários franceses de 1789 terem saído dos antigos colégios jesuítas, agora inativos. O regime republicano brasileiro abriu-lhes uma porta por meio da Lei Federal nº 173 de setembro de 1893[1].
WESTAL William 1781-1856 - começo do Dilúvio 1848 óleo 127 x 193 cm Tate Galery
Fig. 09. O Padre Antônio VIEIRA, aponta a vantagem dos peixes diante de um dilúvio. Os peixes possuem na  água o seu elemento natural e catástrofe líquida não os preocupa e só traz-lhes vantagens e presas inesperadas.

Viera também percebeu, como HOBBES no seu LEVIATHAN,  que as comilanças daqueles que comem uns aos outros só cessam diante de alguém mais forte é capaz de lhe DAR ou TIRAR algo do qual depende a sua sorte. Na metáfora da ARCA de NOÉ os animais suspenderam temporariamente se comerem vivos enquanto os cardumes de peixes continuaram a se devoraram vivos aos cardumes ou singularmente.
“O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque, tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum que Noé lhes repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude”.
Não bastava a simples descrição e advertência do Pe. Antônio Vieira . O habito da devoração reciproca se impunha com todas as forças e era mais fácil silenciar esta voz isolada do que contrariar os hábitos veteranos.  Os dissimuladores das incômodas verdades possuem toda a razão num aspecto: a História não se repete. Agarra-se a esta estreita tábua que o acaso lhes alcança no seu naufrágio e passam a insistir naquilo que lhes interessa que é o dia de hoje, do aqui e do agora. Assim tudo permanece entregue à Natureza. Para os dissimuladores das incômodas verdades de Antônio Vieira não há mais NADA ANTES, DURANTE e APÓS ele morto e sepultado nesta Natureza brasileira e com todas estas velharias decrépitas de um Regime Colonial. Dissimuladores das incômodas verdades que não alcançam pois elas pertencem a uma civilização e da qual nunca tiveram a senha ou chave de acesso. Querem ignorar a premissa de toda a civilização é uma construção artificial. Civilização que naufraga e perece no instante seguinte em que não é mais cultivada e reproduzida.
Fig. 10- Por mais inverossímil que seja a  metáfora da ARCA de NOÈ ela evidencia a capacidade humana das previsão, do projeto e da sua paciente realização. Na concepção do  Padre Antônio VIEIRA, uma civilização artificial, planejada e executada por uma comunidade motivada pode ser eficiente contra a opinião geral descrente e vivendo até último momento um regime, uma ideologia e um cardume inteiramente condenado a ser engolida pelo mais forte e esperto.

A criatura humana é responsável na medida dos dons que possui e das escolhas que realiza em nome destes dons e liberdade. Assim não é possível cobrar dos peixes qualquer sanção moral dos seus atos.
Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade.




 FONTES NUMÉRICAS DIGITAIS
Não só os tapuias comem uns aos outros...”  do
SERMÃO aos PEIXES de Pe. Antônio VIEIRA  - 1654 – São Luís do Maranhão
Texto
MARANHÃO e Pe. VIEIRA


HUMILDADE: recitada  por LIMA  DUARTE

O RISO e PRANTO em VIEIRA

ANTROPÒFAGOS e CANIBAIS
Manifesto


METÀFORA

Algumas obras do Pe. Antônio VIEIRA (1608-1697)-
na COLEÇÂO BRASILIANA de Jose (1914-2010) e Guita(1916-2006) MINDLIN
Sermões
Cartas
Textos

A HISTÒRIA NÂO SE REPETA a NÃO SER como FARSA

Texto do LEVIATÃ de Thomas HOBBES (1588-1679)
Este material possui uso restrito ao apoio do processo continuado de ensino-aprendizagem
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Este material é editado e divulgado em língua nacional brasileira e respeita a formação histórica deste idioma.

Referências para Círio SIMON








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