sábado, 1 de setembro de 2012

NÃO FOI no GRITO – 047




O BRASIL em SETEMBRO de 1812
AS DIFICULDADES para REINVENTAR UM ESTADO COERENTE com o seu TEMPO e o seu LUGAR.
O defeito, portanto, do tribunal da Fazenda he radical; os males que dali nascem incuráveis, e as consequências funestas á prosperidade da naçaõ”.
Correio Braziliense, nº 52, setembro de 1812, p. 426.

Fig. 01 – TORRE de BELÉM  LISBOA - Pintura de João Martins

No início do século XIX, os Estados nacionais estavam especulando e experimentando formas e funções de coerentes com a era industrial. Estes Estados ganhavam forças, no plano mundial,  por meio da circulação de insumos necessário às máquinas, avolumando a distribuição de bens e de serviços. As fronteiras destes Estados nacionais possuem a função da membrana que envolve uma célula viva. Ao mesmo tempo em que esta membrana protege o Estado Nacional do seu meio ambiente, o distingue e o separa. As suas alfândegas permitem-lhes selecionar o que é positivo para esta célula nacional, seu crescimento e multiplicação.
Portugal estava, em setembro de 1812, em desvantagens gritantes nesta circulação de insumos necessários às máquinas e na distribuição de bens e de serviços, diante dos demais europeus. Isto depois de ter sido um dos Estados pioneiros e líder na circulação e distribuição de bens e de serviços. A sua colônia brasileira dormia em berço esplêndido e natural de num imenso parque fechado por fortalezas dependentes da metrópole. Esta, infensa à uma nova época, a envolvia, a sua colônia, por fortes militares que constituíam uma espécie de membrana por meio da qual vigiavam a sua posse. Enquanto isto as suas alfândegas eram entregues a rábulas em reconhecimento por serviços prestado a uma corte que seguia ainda os rituais de um antigo regime. Porém o que importava era a manutenção dos fortes. As províncias coloniais eram administradas por militares de carreira para quem era prioritária a manutenção e municiamento dos fortes.

Fig. 02 - A Doca da ALFÂNDEGA de LISBOA vista do Rio Tejo, num cartão postal, assinado no dia 04.10.1908.

O Brasil estava, em setembro de 1812, exatamente a uma década de sua soberania. Não lhe servia mais a pequena e castigada mentalidade lusitana. Semelhante ao adolescente eram-lhe impróprios os trajes da sua infância colonial. O desafio brasileiro era reinventar um Estado com todos os equipamentos. Para isto tinha pela frente uma década e que foi aproveitada exaustivamente para que esta passagem fosse sem traumas, sem grito e sem recaídas coloniais.
Mas regressemos ao mês de setembro de 1812.
Pode-se afirmar que o interior brasileiro era um mistério aos não ibéricos, nesta época. O registro público - das suas potencialidades e das suas vulnerabilidades - estava em branco, ou intencionalmente muito confuso.  

Fig. 03 - MAPA do SUL do BRASIL de Jacques Nicolas Bellin (1703-1772), incluído no seu Petit Atlas Maritime (1764) Este mapa mostra o desconhecimentos do interior do Brasil pelos não ibéricos. Os dados cartográficos deste estado estão longe de qualquer realidade Ele foi editado após exércitos de Portugal e Espanha destruírem., entre 1750 até 1761, .os Sete Povos dos  jesuítas e índios guaranis do Rio Grande do Sul.. Mas o Forte de Jesus, Maria e José já figura junto ao Porto de São Pedro (Rio Grande).
 Clique sobre o mapa para ampliá-lo
O interior do Brasil, pelo que é visível no mapa de 1764 (Fig. 03), era quase desconhecido para qualquer estrangeiro. Isto para evidente gáudio, trabalho e benefício do lusitano. O interior da célula continental era algo hermético para qualquer estrangeiro que não fosse autorizada pelo trono real. Isto aconteceu, por exemplo, com o explorador. Mesmo o cientista alemão Friederich Wilhelm Heinrich Alexander Freiher von Humboldt (1769-1859) foi impedido de viajar e de explorar o interior brasileiro, entre 1799-1804. Diante disto estava tornando eminente e urgente a discussão da questão das Alfândegas colocadas na membrana das fronteiras desta colônia que oficialmente era Unida ao Reino.  A abertura dos Portos era mais do que a necessária, porém era formal. No entanto o seu funcionamento efetivo não podia seguir, de forma alguma, o modelo posto em prática nas alfândegas de Portugal continental europeu.
O Correio Braziliense, no nº 52, escrevia, em setembro de 1812, nas suas páginas 424 até 427, no segmento “Commercio e Artes” o que segue:

Observaçoens sobre o Regimento d'Alfândega do Rio de Janeiro”.

Fig. 04 – O prédio da ALFÂNDEGA do BRASIL do Rio de Janeiro, construído posteriormente a este regimento, no Primeiro Império, sob a estética implantada pela Missão Artística Francesa. Esta tipologia arquitetônica voltava à lógica racional dos prédios públicos da era napoleônica e forte influência dos materiais de era industrial e da fabricação em série.

O Regimento da Alfândega, que publicamos no nosso N°. passado, foi o resultado de deliberaçoens, ocasionadas pela convicção em que estaõ todos os homens, que pensaõ na matéria, de quaõ inadequados saõ todos os meios da administração das finanças, para suprir as necessidades do Estado ; e nisto apparece mui conspicua diminuição relativa dos rendimentos das alfândegas.
Agitando-se, pois no Rio-de-Janeiro uma reforma, neste ramo da administração publica; mandou o Conselho da Fazenda examinar o estudo da Alfândega, por uma commissaõ de tres conselheiros, os quaes peio espaço de muitos dias, andaram de meza em rneza, instruindo-se do expediente daquella repartição; e suppoz-se, que depois de taõ escrupulosas indagaçoens, se cortariam pela raiz todos os abusos, e extravios: mas naõ resultou mais do que aquelle Regimento, que, pelo commum estrebilho— em quanto naõ deu outras povidencias—se vê que naõ saõ mais do que providencias interinas.
O foral da alfândega de Lisboa, foi o grande prototypo, que aquelles financeiros consultaram; mas he obvio, que por mais bem pensado, por mais adequado que aquelle foral fosse ás circumstancias em que foi feito; he elle em muitos casos inteiramente inapplicavel ao tempo presente, e ás circumstancias do Brazil. He esta a mais importante differença entre o homem que segue a rotina do que acha estabelecido na practica; e o sábio, que applica os principios geraes da sciencia ás circumstancias do tempo.
O systema de alfândegas, estabelecido nos Estados Unidos, he sem duvida o que mais convém ás circumstancias actuaes do Brazil; porem ; quaes saõ os Conselheiros da Fazenda no Rio-de-Janeiro, que viajaram os Estados Unidos, que leram os differentes regulamentos que ali há a este respeito, que observaram o modo de os pôr em practica; e que, pela conversação dos homens instruídos daquella naçaõ, se informaram das razoens de suas determinaçoens ?

Fig, 05 – O FORTE dos REIS MAGOS, em  NATAL – RN-  do BRASIL  inaugurado em 06.01.1598

Os ministros, que compõem o Governo do Brazil, modelaram a corte do Rio-de-Janeiro pela de Lisboa ; porque éra a operação mais fácil. Achava-se no almanack de Lisboa um Conselho da Fazenda, uma Meza da Consciência, &c. e portanto fez-se também no Rio-de-Janeiro outro Conselho da Fazenda, outra Meza da Consciência, tStc. Um ministro pode governar desta maneira com os olhos fechados,  mas ¿ qual he o gênio creador, qual he a penetração, qual he a generalidade de principios de legislação, e politica, que se descobrem nessa imitação servil do almanack de Lisboa ?

O Conselho da Fazenda he composto de homens, incapazes de emprehender, e executar um plano de finanças, principalmente na matéria de arranjamentos da alfândega; porque por melhores que sejam, em seu gênero, as pessoas que compõem o tribunal, naõ saõ homens formados, para esta sorte de administração. Sem o menor desejo de detrahir o merecimento das pessoas que compõem aquelle tribunal; o mais que podemos dizer delles, ou que se pôde dizer a seu favor he, que saõ Magistrados, que havendo mostrado intelligencia, e conhecimentos do direito Romano, e Ordenaçoens do Reyno ; que havendo desempenhado com integridade os lugares inferiores de magistratura, em que fôram empregados, fôram promovidos a este tribunal como prêmio de seus seryiços passados. Seja assim tudo isso; porém que ha de commum entre o saber decidir a causa de dous particulares, segundo o direito Romano e Pátrio ; ou saber inventar um systema de regulamentos d'alfandega avantajoso para as rendas do Estado, protector do commercio, obviador dos extravios, e fomentador da industria nacional.


Fig, 06 - FORTE de SANTO ANTÔNIO e FAROL da BARRA do Recôncavo de Salvador na BAHIA.
O defeito, portanto, do tribunal da Fazenda he radical; os males que dali nascem incuráveis, e as consequências funestas á prosperidade da naçaõ. Se os Ministros do Conselho da Fazenda, saõ com effeito, como se alega que saõ, ou devem ser, homens que tem bem servido em lugares da magistratura, patenteando conhecimentos dos princípios de direito, e integridade no comportamento, o mais que se pode dizer de taes homens, ou do tribunal que elles compõem, he, que saõ mui capazes para sentenciar as causas jurídicas, cujas decisoens se commetterem ao seu cuidado ¿ porém como se segue dahi, que possam ser consultados com vantagem, quando se tracta de fazer regulamentos de finança, taes quaes os de alfândegas, em que se involvem as theorias do commercio geral, estrangeiro e doméstico?


Fig, 07 - FORTE de SÃO MARCELO frente ao porto de Salvador no interior do Recôncavo da Bahia.

Os portos e costas do Brazil offerecem uma facilidade para os contrabandos, que naõ soffrem comparação com o porto de Lisboa; logo a servil imitação do foral d'alfândega de Lisboa, para a do Rio-de-Janeiro, naõ serve senaõ de mostrar a limitação de ideas de quem foi encarregado de fazer o plano.
Naõ he da nossa intenção analizar este Regulamento da alfândega por miúdo, contentando-nos somente com notar as generalidades ; e causa primaria de todos os defeitos ; mas, por via de exemplo; lembraremos uma circumstancia.
A fortaleza de Belém, em Lisboa, cortava aquelle porto em duas partes, uma de S. Juliaõ até Belém outra de Belém até a alfândega. A estreiteza do rio ; a dificuldade do desembarque sem ser percebido das fortalezas, &c.; fez com que se julgasse conveniente arranjar duas classes de anchoradouros ; e duas classes de guardas d'alfandega; que serviam para vários, e úteis fins; chamados guardas d'alfandega, e guardas de Belém.



Fig. 08 - FORTE de VILEGAGNON na entrada da Bahia da Guanabara e atual Escola Naval.

No Rio-de-Janeiro puzéram a fortaleza de Villagalhaõ, para imitar a de Belém; determinaram também duas classes de guardas ; e naõ atenderam aque o porto em vez de ser um rio, estreito, e comprehensivo, lie uma bahia extensissima, aonde desaguam quatorze rios navegáveis, para onde se podem mandar lanchas e botes a toda a hora ; e que as duas classes de anchouradouros, e de guardas, só serve de augmentar a confusão, e portanto facilitar o extravio.


Fig. 09 - FORTE do PRINCIPE da BEIRA – RONDÔNIA - construído entre 1776-1783.

O mesmo dizemos a respeito das fianças, e assignantes da alfândega, que se imitou do foral de Lisboa; regulamento que no Brazil naÕ pode produzir senaõ a preponderância odiosa do monopólio de certas casas, a que aquelle privilegio se concede, como todos os negociantes conhecem ; mas que naõ podiam ser entendidos por homens, cujos estudos, e applicaçaõ se tem dirigido a matérias mui differentes, e alheias deste propósito.

Os lusitanos estavam colocando em prática, ao pé da letra, a norma UTI POSSIDETIS, ITA POSSIDEATIS (quem possui de fato, deve possuir de direito) que defenderam no Tratado de Madrid em 1750. De um lado foi bom para o poder lusitano. Mas este se acomodou com esta medida e se fechou, física e mentalmente, por um rosário de fortes distribuídos ao longo de toda a costa e nas margens dos seus rios navegáveis. Certamente dava uma trégua para a exploração da Natureza, transformando-a num grande parque cercado e misterioso. Garantia, assim, a defesa dos índios e dos grandes latifundiários. Mas iniciavam ali os problemas. A escravidão interna era legal.  Andava solta, como ainda acontece em setembro de 2012, sendo praticada por estes latifundiários e pelos aventureiros lusitanos. Estes aventureiros lusitanos podiam praticar qualquer crime. A impunidade era lhes garantida no interior deste grande parque cercado e misterioso. Contanto que não atingissem o poder do Estado ou questionassem a política colonial. Para tanto a discussão das funções - das projetas alfândegas brasileiras - ganhavam um sentido vital e determinante.  No interior destas fronteiras, o Brasil, vigiado pelas alfândegas, dormia em berço esplêndido e infenso à uma nova época.
Porém o pior problema residia do lado de fora das fronteiras do Brasil. Época na qual se configurava outro mundo no qual a indústria fazia fluir insumos, capitais, mão de obra e fazia circular novos bens, produzidos pelas novas fábricas. 



Fig. 10 – Os negociantes de BOSTON, fantasiados de indígenas invadiram os navios mercantes britânicos e jogaram, no dia 16 de dezembro de 1773,  ao mar o chá trazido pelos ingleses da produção de suas colônias. Além de destruir o produto comercial inviabilizavam a cobrança dos impostos arrecadados na alfândega controlada pelos europeus. Com este ato os norte-americanos, provocaram uma série de vinganças dos colonialistas, mas iniciaram o ciclo que culminaria na sua soberania.

Enquanto isto o mundo havia aprendido a lição dos comerciantes de Boston, jogando ao mar os produtos ingleses, controlados e taxados pelos colonizadores britânicos.
Após a Campanha de Guerra Guaranítica - 1750 -  o interior do atual Estado do Rio Grande do Sul permaneceu o mesmo mistério para as culturas extra ibéricos. Em geral os militares possuem ótimos cartógrafos. Mas eram segredos de Estado e das províncias coloniais, administradas por presidentes militares 


Fig. 11 – ALFÂNDEGA de LISBOA no início do século XX.

Competia ao Estado Brasileiro, em gestação, encontrar um ponto de equilíbrio entre as forças antagônicas de uma terra de ninguém, na qual todos os portos não só abertos, mas livres. Do outro lado estava o modelo lusitano das fronteiras herméticas administradas rotineiramente por eruditos rábulas.
O editor não permanecia nesta dialética binária reduzida a duas forças antagônicas. Para ele o equilíbrio homeostático - de um projeto de um Estado Brasileiro, diferente do lusitano – estava no argumento de que “he esta a mais importante differença entre o homem que segue a rotina do que acha estabelecido na practica; e o sábio, que applica os principios geraes da sciencia ás circumstancias do tempo”.  (Correio Braziliese nº 52, setembro de 1812, página 425). Certamente os postulados Iluministas estavam surtindo efeito e caminhando para a vitória da Razão sobre as crenças místicas que sustentavam o “Ancien Règime” do qual uma amostra havia se refugiado na América, diante das tropas napoleônicas.



Fig.. 12 – O prédio atual da ALFÂNDEGA da CIDADE do PORTO

Numa visão panorâmica e retrospectiva - de 200 anos da História brasileira - é necessário reconhecer que a década 1812-1822, foi aproveitada exaustivamente para discutir e projetar esta passagem  sem traumas, sem grito e sem recaídas coloniais. Certamente o texto do Correio Braziliense, escrito, impresso e distribuído a partir de Londres, é um dos testemunhos deste período. O seu redator, como jurista formado por Coimbra, soube falar contra a sua própria classe e questionar os limites das suas competências. Neste documento soube evidenciar as resistências, os entraves e os problemas que esta mudança provocaria. Tudo isto no cenário dos tropeços de uma corte parada no tempo e de uma mentalidade despreparada para os novos tempos.


FONTES
GOLIN,Tau. A Guerra Guaranítica: como os exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos
        jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul. (1750-1761).    Passo Fundo : PUF e Porto Alegre : UFRGS,   1998, 624 p.


CORREIO BRAZILIENSE -Vol. IX nº 52 pp.405-568-  SETEMBRO de 1812


ALFÂNDEGA de LISBOA em SETEMBRO de

Friederich Wilhelm Heinrich Alexander Feiher von Humboldt (1769-1859)


UTI POSSIDETIS, ITA POSSIDEATIS (quem possui de fato, deve possuir de direito)



Este material possui uso restrito ao apoio do processo continuado de ensino-aprendizagem
Não há pretensão de lucro ou de apoio financeiro nem ao autor e nem aos seus eventuais usuários
Este blog é editado e divulgado em língua nacional brasileira e respeita a sua formação histórica. ...
1º  blog :
SUMÁRIO do 1º ANO de postagens do blog NÃO FOI no GRITO

Nenhum comentário:

Postar um comentário