O REGIME COLONIAL SILENCIOU VIEIRA
...com os seus próprios argumentos.
“Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para
peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar
para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois
peixes”.
Do “SERMÃO aos PEIXES” de Pe. Antônio VIEIRA - 1654 – São Luís do Maranhão
Fig. 01., Em muitos aspectos as obras, os pensamentos
e a memória do Padre Antônio VIEIRA pode
ser comparada com a temerária aventura do peixe-voador que tenta se
equilibrar provisoriamente acima e por fora do Regime Colonial lusitano. Vindo
deste regime e um dos seus devotados agentes ele não se conformava com as
faltas de luzes, as injustiças e a
cegueira que este mar impunha aos seus habitantes. Na contemporaneidade o
desempenho do peixe-voador pode ser comparado com o
deslize do “mouse” sobre a tela do monitor.
NÃO FOI NO GRITO que a retórica, o verbo e os textos do Pe Antônio
Vieira desapareceram e foram varridos,
escondidos e dissimulados da memória brasileira. O Regime Colonial
lusitano usou o esquecimento, o silêncio e a ignorância depois de
condenar a voz do pregador, em vida, “ao silêncio obsequioso”. Voz incômoda, desaparecido, em 1697, em
Salvador na Bahia. Depois de silenciar física e presencialmente o Regime Colonial lusitano dedicou-se a apagar a
sua memória. Velou e patrulhou silenciosamente para que não circulassem os seus
escritos incômodos e muito menos fossem objeto de estudos e de recomendações.
Fig. 02. Padre Antônio VIEIRA, nascido no dia 06
de fevereiro de 1608 em Lisboa e faleceu a 18 de julho de 1697 em Salvador
(Brasil)
Enquanto vivo Antônio Vieira usou a retórica, as letras e conquistou
destaque no púlpito, para materializar as sua mente ativa, brilhante e coerente
com a sua realidade. Nesta realidade buscava apoio para gerar METÁFORAS como
aquelas das COMPARAÇÕES entre a natureza e as ações dos HOMENS e dos PEIXES. METÁFORAS que atravessam todo o discurso de
Vieira e contribuem para a criação de uma serie de pensamentos materializados
em textos que continuam a se projetar
através do tempo. Vieira gerou uma obra coerente por meio da cuidadosa escolha
do VERBO ELOQUENTE que chega intacto ao nosso TEMPO devido ao registro impresso.
O orador parte do empírico para ancorar esta façanha e fortuna naquilo que
todos conhecem em todos os tempos. Com o
seu VERBO ELOQUENTE Vieira conduz o seu
público para a abstração, ao
desconhecido e para a surpresa daquilo que ninguém aguarda. A surpresa se origina no fato da sua sólida
descrição do que todos parecem conhecer e são capazes de ler.
Pieter BRUEGHEL o Velho 1525-1569 - Peixe maior engole o menor
Fig. 03. O Padre Antônio VIEIRA, conhecia a culturas
e arte do Flandres. Esta imagem - divulgada em gravuras - é do seu século
anterior ao pregador, político e defensor dos mais fracos e inválidos pilhados
pelos prepotentes e oportunistas.
Como intelectual consciente e seguro da perenidade da sua obra não
esconde a sua logística, suas estratégias e suas táticas. Na logística evoca aquilo
que a maioria de sua audiência havia experimentado algum dia como migrante para
o Maranhão como os navios, as águas, os seus habitantes nativos e as rotas
marítimas.
“Outra
cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de
vós é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens
experimentam os que navegam para estas partes”
Na estratégia vale-se das METÀFORAS retirados desta experiências
tangíveis. Nas táticas surpreende, desarma as mentes mais resistentes e nelas
planta palavras memoráveis e que jogam estas inteligências resistentes acima e
fora da Natureza e do seu quotidiano numa colônia vigiada e patrulhada.
Fig. 04. A percepção dos desmandos do regime
colonial lusitano pelo Padre Antônio
VIEIRA foi duramente exposto e perpetuada nos seus escritos, O seu projeto
de um império lusitano, como aquele de Hipólito José da Costa foram
liminarmente descartadas por um projeto e um pacto transnacional corroído por espíritos mesquinhos e incapazes
de perceber as suas competências e limites e trabalhar arduamente para
trazê-las ao mundo empírico.. Não e suficiente um voluntarismo de pessoas que
podem eventualmente serem boas ou más. È necessário um regime que seja
sustentado por um projeto e um pacto social, econômico e político justo, bom e
belo que galvanize todas as vontades, mentes e sentimentos desta nação
imaginada.
Colônia na qual todos sentem, veem e sabem que os fracos, os índios,
os escravos e os pobres são vigiados, patrulhados e no final são devorados em
cardumes.
“Os que
menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só
diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui
devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não
se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão
que devoram e engolem os povos inteiros”.
Fig. 05. O polvo é o
animal que para o Padre Antônio VIEIRA,
é o mais traiçoeiro e ameaçador. As palavras do pregador jesuíta relativizam o
próprio Judas. Este só sinalizou, mas não prendeu. O polvo engana e prende a
sua vítima nos seus tentáculos com ventosas e a devora viva. Para THOMAS
HOBBES DE MALMESBURY (1588-1679) o mítico POLVO GIGANTE do imaginário popular é
uma das bases empíricas para criar o seu LEVIATÃ.
A METÁFORA é tanto mais densa ameaçadora e profunda quanto mais
insondável é o perigo. Perigo personalizado no POLVO Pelágico, apropriado dos
insondáveis repertórios populares dos marinheiros e pintado por Vieira como
animal marinho traiçoeiro e mortal para a fauna marinha.
Mas já
que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo,
contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo
Ambrósio. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles
seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha,
parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão
modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois
grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor
do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das
mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no
camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula,
no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na
areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra,
como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui
que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando
desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio
engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas?
Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o
prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez
o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi
traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a
muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a
primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê,
peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é
menos traidor! Polvo.
Se Judas Escariotes encontrou
desculpas e atenuantes na palavra de Vieira, os traços do comportamento do
polvo podiam serem facilmente encontrados nos humanos bem concretos e na sua
assistências na igreja.
Fig. 06. O orador sacro explora, com maestria, o
imaginário popular que cerca o polvo.
Transposto ao mundo da retórica pelo
Padre Antônio VIEIRA, este animal
torna-se metáfora para o mundo humano muito mais traiçoeiro. Criatura
humana capa de prender as suas vítimas em
cardumes e as prende - nos seus tentáculos
com ventosas - e as devora vivas .
Enquanto o polvo se esconde nos abismo do mar o peixe voador se exibe
na superfície e insatisfeito com a sua natureza.
“Com os
voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me,
voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O
mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar,
e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para
as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois aves,
senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voador, que
vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho”.
Fig. 07. Os rituais antropofágicos dos índios
brasileiros são, para o Padre Antônio VIEIRA, menos condenáveis do que as
devorações dos civilizados. Estes devoram as suas vítimas vivas, aos
cardumes e multidões sem fazer o menor ritual. Rituais antropafágicos
sublimados nas cerimônias cristãs e retomado pela cultura brasileira com o MOVIMENTO
ANTROPOFÁGICO..
Viera antecipa em três séculos o MOVIMENTO ANTROPOFÁGICO BRASILEIRO ao
descrever as comilanças daqueles que comem uns aos outros. Comem vivos aos
cardumes e em sacrifício para a sua cobiça ilimitada. Basta apenas farejar uma
vítima potencial desta cobiça
“Vede
um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai
quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o
escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o
a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido.
São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os
corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está
executado nem sentenciado, e já está comido”.
Não só os tapuias devoravam uns ao outros. O colonizador também
devorava os seus semelhantes em nome de uma civilização superior e devorava
vivo as suas vítimas.
O Regime Colonial lusitano fez de tudo para apagar a memória das
denúncias, das revelações e das verdades incômodas do pregador jesuíta. Fácil
de apagar - sem gritos, sussurros ou murmúrios - pois poucos sabiam ler. Com a
imprensa censurada e com a muralha do “NIHIL OBSTAT” em nome do bispo e da
Santa Inquisição raros textos circulavam e eram lidos, meditados e colocados em
contraposição ao Regime Colonial. O que valeu a redenção dos textos do pregador
foi a circulação em outras culturas e línguas. Previdente este orador confiou o
seu pensamento a uma diversidade de mídias além da fala e da encenação
retórica.
Na contramão os dissimuladores cobrem o túmulo e as obras deste
pensador do período colonial brasileiro com mitos e afirmações generalizantes e
que são índices claros de que nunca leram e muito menos entenderam este
pensamento. Isto se não criam resenhas nas quais mais confundem, naturalizam e
a misturam com todo lixo filosófico do seu próprio tempo. A mentalidade
estreita e imediatista destes mediadores improvisados se apropria da palavra do
orador e raciocinam “Contentai-vos com a
vossa religião e com a vossa ordem, e
não queirais ser político, pois sois jesuíta”.
Pieter BRUEGHEL o Velho 1525-1569 - Peixe maior engole o menor -
Detalhe
Fig. 08. A atualidade do
Padre Antônio VIEIRA permanece na medida
em que ele aponta a permanente e continuada disposição humana em exercer o seu
poder de domínio de apropriação e de transformação do que lhe cai sobre o
olhar, mente e mãos. , A lógica huna
é lei e o seu interesse não conhece competências e limites.
A extinção da ordem jesuíta, a sua execração e a expulsão da Europa dos
seus membros e das suas colônias, jogavam contra a memória do Pe. Antônio Vieira.
Não havia argumentos válidos contra a Igreja e o Estado unidos e menos dignos
de acolhimento, consideração e separação do trigo do joio. Os jesuítas
recolhidos à Rússia, de Catarina a Grande,
tiveram imensas dificuldades para preservar e fazer retornar o seu
patrimônio simbólico para a Cultura Ocidental europeia. Este renascimento
jesuíta foi lento, inseguro e cheio de reações adversas apesar de muitos revolucionários
franceses de 1789 terem saído dos antigos colégios jesuítas, agora inativos. O
regime republicano brasileiro abriu-lhes uma porta por meio da Lei Federal nº
173 de setembro de 1893[1].
WESTAL William 1781-1856 - começo do Dilúvio 1848 óleo 127 x 193 cm
Tate Galery
Fig. 09. O Padre Antônio VIEIRA, aponta a vantagem
dos peixes diante de um dilúvio. Os peixes possuem na água o seu elemento natural e catástrofe
líquida não os preocupa e só traz-lhes vantagens e presas inesperadas.
Viera também percebeu, como HOBBES no seu LEVIATHAN, que as comilanças daqueles que comem uns aos
outros só cessam diante de alguém mais forte é capaz de lhe DAR ou TIRAR algo
do qual depende a sua sorte. Na metáfora da ARCA de NOÉ os animais suspenderam
temporariamente se comerem vivos enquanto os cardumes de peixes continuaram a
se devoraram vivos aos cardumes ou singularmente.
“O
mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque, tendo escapado
somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E
finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na
arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada
um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos
lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum que Noé lhes
repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes
desta temperança, porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas
ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da
necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade e
será maior virtude”.
Não bastava a simples descrição e advertência do Pe. Antônio Vieira .
O habito da devoração reciproca se impunha com todas as forças e era mais fácil
silenciar esta voz isolada do que contrariar os hábitos veteranos. Os dissimuladores das incômodas verdades
possuem toda a razão num aspecto: a História não se repete. Agarra-se a esta
estreita tábua que o acaso lhes alcança no seu naufrágio e passam a insistir naquilo
que lhes interessa que é o dia de hoje, do aqui e do agora. Assim tudo
permanece entregue à Natureza. Para os dissimuladores das incômodas verdades de
Antônio Vieira não há mais NADA ANTES, DURANTE e APÓS ele morto e sepultado nesta
Natureza brasileira e com todas estas velharias decrépitas de um Regime
Colonial. Dissimuladores das incômodas verdades que não alcançam pois elas
pertencem a uma civilização e da qual nunca tiveram a senha ou chave de acesso.
Querem ignorar a premissa de toda a civilização é uma construção artificial.
Civilização que naufraga e perece no instante seguinte em que não é mais
cultivada e reproduzida.
Fig. 10- Por mais inverossímil que seja a metáfora da ARCA de NOÈ ela evidencia a
capacidade humana das previsão, do projeto e da sua paciente realização. Na
concepção do Padre Antônio VIEIRA, uma
civilização artificial, planejada e executada por uma comunidade motivada pode
ser eficiente contra a opinião geral descrente e vivendo até último momento um
regime, uma ideologia e um cardume inteiramente condenado a ser engolida pelo
mais forte e esperto.
A criatura humana é responsável na medida dos dons que possui e das
escolhas que realiza em nome destes dons e liberdade. Assim não é possível
cobrar dos peixes qualquer sanção moral dos seus atos.
Ah
peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor
me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos
excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a
minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não
ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com
a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu
quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade.
FONTES
NUMÉRICAS DIGITAIS
“Não só os tapuias comem
uns aos outros...” do
SERMÃO aos PEIXES de Pe. Antônio VIEIRA - 1654 – São Luís do Maranhão
Texto
MARANHÃO e Pe.
VIEIRA
HUMILDADE:
recitada por LIMA DUARTE
O RISO e PRANTO em VIEIRA
ANTROPÒFAGOS e CANIBAIS
Manifesto
METÀFORA
Algumas obras do Pe. Antônio VIEIRA (1608-1697)-
na COLEÇÂO BRASILIANA de Jose (1914-2010) e
Guita(1916-2006) MINDLIN
Sermões
Cartas
Textos
A HISTÒRIA NÂO SE REPETA a NÃO SER como FARSA
Texto do LEVIATÃ de Thomas HOBBES (1588-1679)
Este material possui uso restrito ao apoio do processo
continuado de ensino-aprendizagem
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nacional brasileira e respeita a formação histórica deste idioma.
Referências para Círio SIMON
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