O BRASIL em SETEMBRO de 1812
AS
DIFICULDADES para REINVENTAR UM ESTADO COERENTE com o seu TEMPO e o seu LUGAR.
“O
defeito, portanto, do tribunal da Fazenda he radical; os males que dali nascem
incuráveis, e as consequências funestas á prosperidade da naçaõ”.
Correio Braziliense, nº 52, setembro
de 1812, p. 426.
Fig. 01 – TORRE de BELÉM LISBOA - Pintura de João Martins
No início do século XIX,
os Estados nacionais estavam especulando e experimentando formas e funções de
coerentes com a era industrial. Estes Estados ganhavam forças, no plano
mundial, por meio da circulação de
insumos necessário às máquinas, avolumando a distribuição de bens e de
serviços. As fronteiras destes Estados nacionais possuem a função da membrana
que envolve uma célula viva. Ao mesmo tempo em que esta membrana protege o
Estado Nacional do seu meio ambiente, o distingue e o separa. As suas
alfândegas permitem-lhes selecionar o que é positivo para esta célula nacional,
seu crescimento e multiplicação.
Portugal estava, em
setembro de 1812, em desvantagens gritantes nesta circulação de insumos
necessários às máquinas e na distribuição de bens e de serviços, diante dos
demais europeus. Isto depois de ter sido um dos Estados pioneiros e líder na
circulação e distribuição de bens e de serviços. A sua colônia brasileira
dormia em berço esplêndido e natural de num imenso parque fechado por
fortalezas dependentes da metrópole. Esta, infensa à uma nova época, a envolvia,
a sua colônia, por fortes militares que constituíam uma espécie de membrana por
meio da qual vigiavam a sua posse. Enquanto isto as suas alfândegas eram
entregues a rábulas em reconhecimento por serviços prestado a uma corte que
seguia ainda os rituais de um antigo regime. Porém o que importava era a manutenção
dos fortes. As províncias coloniais eram administradas por militares de
carreira para quem era prioritária a manutenção e municiamento dos fortes.
Fig. 02 - A Doca da ALFÂNDEGA de LISBOA vista do Rio Tejo,
num cartão postal, assinado no dia 04.10.1908.
O Brasil estava, em
setembro de 1812, exatamente a uma década de sua soberania. Não lhe servia mais
a pequena e castigada mentalidade lusitana. Semelhante ao adolescente eram-lhe
impróprios os trajes da sua infância colonial. O desafio brasileiro era
reinventar um Estado com todos os equipamentos. Para isto tinha pela frente uma
década e que foi aproveitada exaustivamente para que esta passagem fosse sem
traumas, sem grito e sem recaídas coloniais.
Mas regressemos ao mês
de setembro de 1812.
Pode-se afirmar que o
interior brasileiro era um mistério aos não ibéricos, nesta época. O registro
público - das suas potencialidades e das suas vulnerabilidades - estava em
branco, ou intencionalmente muito confuso.
Fig. 03 - MAPA do SUL do BRASIL de Jacques
Nicolas Bellin (1703-1772), incluído no seu Petit Atlas Maritime (1764) Este
mapa mostra o desconhecimentos do interior do Brasil pelos não ibéricos. Os
dados cartográficos deste estado estão longe de qualquer realidade Ele foi
editado após exércitos de Portugal e Espanha destruírem., entre 1750 até 1761, .os
Sete Povos dos jesuítas e índios
guaranis do Rio Grande do Sul.. Mas o Forte de Jesus, Maria e José já figura
junto ao Porto de São Pedro (Rio Grande).
Clique sobre o mapa para ampliá-lo
O interior do Brasil, pelo
que é visível no mapa de 1764 (Fig. 03), era quase desconhecido para qualquer
estrangeiro. Isto para evidente gáudio, trabalho e benefício do lusitano. O
interior da célula continental era algo hermético para qualquer estrangeiro que
não fosse autorizada pelo trono real. Isto aconteceu, por exemplo, com o
explorador. Mesmo o cientista alemão Friederich Wilhelm Heinrich Alexander Freiher
von Humboldt (1769-1859) foi impedido de viajar e de explorar o interior
brasileiro, entre 1799-1804. Diante disto estava tornando eminente e urgente a
discussão da questão das Alfândegas colocadas na membrana das fronteiras desta
colônia que oficialmente era Unida ao Reino.
A abertura dos Portos era mais do que a necessária, porém era formal. No
entanto o seu funcionamento efetivo não podia seguir, de forma alguma, o modelo
posto em prática nas alfândegas de Portugal continental europeu.
O Correio Braziliense,
no nº 52, escrevia, em setembro de 1812, nas suas páginas 424 até 427, no
segmento “Commercio e Artes” o que segue:
“Observaçoens sobre o Regimento
d'Alfândega do Rio de Janeiro”.
Fig. 04 – O prédio da ALFÂNDEGA do BRASIL do Rio de Janeiro,
construído posteriormente a este regimento, no Primeiro Império, sob a estética
implantada pela Missão Artística Francesa. Esta tipologia arquitetônica voltava
à lógica racional dos prédios públicos da era napoleônica e forte influência
dos materiais de era industrial e da fabricação em série.
O Regimento da Alfândega, que
publicamos no nosso N°. passado, foi o resultado de deliberaçoens, ocasionadas
pela convicção em que estaõ todos os homens, que pensaõ na matéria, de quaõ
inadequados saõ todos os meios da administração das finanças, para suprir as
necessidades do Estado ; e nisto apparece mui conspicua diminuição relativa dos
rendimentos das alfândegas.
Agitando-se, pois no Rio-de-Janeiro
uma reforma, neste ramo da administração publica; mandou o Conselho da Fazenda
examinar o estudo da Alfândega, por uma commissaõ de tres conselheiros, os
quaes peio espaço de muitos dias, andaram de meza em rneza, instruindo-se do expediente
daquella repartição; e suppoz-se, que depois de taõ escrupulosas indagaçoens,
se cortariam pela raiz todos os abusos, e extravios: mas naõ resultou mais do
que aquelle Regimento, que, pelo commum estrebilho— em quanto naõ deu outras
povidencias—se vê que naõ saõ mais do que providencias interinas.
O foral da alfândega de Lisboa, foi
o grande prototypo, que aquelles financeiros consultaram; mas he obvio, que por
mais bem pensado, por mais adequado que aquelle foral fosse ás circumstancias
em que foi feito; he elle em muitos casos inteiramente inapplicavel ao tempo
presente, e ás circumstancias do Brazil. He esta a mais importante differença
entre o homem que segue a rotina do que acha estabelecido na practica; e o
sábio, que applica os principios geraes da sciencia ás circumstancias do tempo.
O systema de alfândegas,
estabelecido nos Estados Unidos, he sem duvida o que mais convém ás circumstancias
actuaes do Brazil; porem ; quaes saõ os Conselheiros da Fazenda no Rio-de-Janeiro,
que viajaram os Estados Unidos, que leram os differentes regulamentos que ali
há a este respeito, que observaram o modo de os pôr em practica; e que, pela
conversação dos homens instruídos daquella naçaõ, se informaram das razoens de
suas determinaçoens ?
Fig, 05 – O FORTE dos REIS MAGOS, em NATAL – RN- do BRASIL inaugurado em 06.01.1598
Os ministros, que compõem o Governo
do Brazil, modelaram a corte do Rio-de-Janeiro pela de Lisboa ; porque éra a
operação mais fácil. Achava-se no almanack de Lisboa um Conselho da Fazenda,
uma Meza da Consciência, &c. e portanto fez-se também no Rio-de-Janeiro
outro Conselho da Fazenda, outra Meza da Consciência, tStc. Um ministro pode
governar desta maneira com os olhos fechados, mas ¿ qual he o gênio creador, qual he a
penetração, qual he a generalidade de principios de legislação, e politica, que
se descobrem nessa imitação servil do almanack de Lisboa ?
O Conselho da Fazenda he composto de homens, incapazes
de emprehender, e executar um plano de finanças, principalmente na matéria de
arranjamentos da alfândega; porque por melhores que sejam, em seu gênero, as
pessoas que compõem o tribunal, naõ saõ homens formados, para esta sorte de
administração. Sem o menor desejo de detrahir o merecimento das pessoas que compõem
aquelle tribunal; o mais que podemos dizer delles, ou que se pôde dizer a seu
favor he, que saõ Magistrados, que havendo mostrado intelligencia, e
conhecimentos do direito Romano, e Ordenaçoens do Reyno ; que havendo
desempenhado com integridade os lugares inferiores de magistratura, em que
fôram empregados, fôram promovidos a este tribunal como prêmio de seus seryiços
passados. Seja assim tudo isso; porém que ha de commum entre o saber decidir a
causa de dous particulares, segundo o direito Romano e Pátrio ; ou saber
inventar um systema de regulamentos d'alfandega avantajoso para as rendas do
Estado, protector do commercio, obviador dos extravios, e fomentador da
industria nacional.
Fig, 06 - FORTE de SANTO
ANTÔNIO e FAROL da BARRA do Recôncavo de Salvador na BAHIA.
O defeito, portanto, do tribunal da
Fazenda he radical; os males que dali nascem incuráveis, e as consequências funestas
á prosperidade da naçaõ. Se os Ministros do Conselho da Fazenda, saõ com
effeito, como se alega que saõ, ou devem ser, homens que tem bem servido em
lugares da magistratura, patenteando conhecimentos dos princípios de direito, e
integridade no comportamento, o mais que se pode dizer de taes homens, ou do
tribunal que elles compõem, he, que saõ mui capazes para sentenciar as causas
jurídicas, cujas decisoens se commetterem ao seu cuidado ¿ porém como se segue dahi, que
possam ser consultados com vantagem, quando se tracta de fazer regulamentos de
finança, taes quaes os de alfândegas, em que se involvem as theorias do commercio
geral, estrangeiro e doméstico?
Fig, 07 - FORTE de SÃO
MARCELO frente ao porto de Salvador no interior do Recôncavo da Bahia.
Os portos e costas do Brazil
offerecem uma facilidade para os contrabandos, que naõ soffrem comparação com o
porto de Lisboa; logo a servil imitação do foral d'alfândega de Lisboa, para a
do Rio-de-Janeiro, naõ serve senaõ de mostrar a limitação de ideas de quem foi
encarregado de fazer o plano.
Naõ he da nossa intenção analizar
este Regulamento da alfândega por miúdo, contentando-nos somente com notar as
generalidades ; e causa primaria de todos os defeitos ; mas, por via de
exemplo; lembraremos uma circumstancia.
A fortaleza de Belém, em Lisboa,
cortava aquelle porto em duas partes, uma de S. Juliaõ até Belém outra de Belém
até a alfândega. A estreiteza do rio ; a dificuldade do desembarque sem ser
percebido das fortalezas, &c.; fez com que se julgasse conveniente arranjar
duas classes de anchoradouros ; e duas classes de guardas d'alfandega; que
serviam para vários, e úteis fins; chamados guardas d'alfandega, e guardas de
Belém.
Fig. 08 - FORTE de
VILEGAGNON na entrada da Bahia da Guanabara e atual Escola Naval.
No Rio-de-Janeiro puzéram a fortaleza de Villagalhaõ,
para imitar a de Belém; determinaram também duas classes de guardas ; e naõ
atenderam aque o porto em vez de ser um rio, estreito, e comprehensivo, lie uma
bahia extensissima, aonde desaguam quatorze rios navegáveis, para onde se podem
mandar lanchas e botes a toda a hora ; e que as duas classes de anchouradouros,
e de guardas, só serve de augmentar a confusão, e portanto facilitar o extravio.
Fig. 09 - FORTE do
PRINCIPE da BEIRA – RONDÔNIA - construído entre 1776-1783.
O mesmo dizemos a respeito das
fianças, e assignantes da alfândega, que se imitou do foral de Lisboa;
regulamento que no Brazil naÕ pode produzir senaõ a preponderância odiosa do
monopólio de certas casas, a que aquelle privilegio se concede, como todos os
negociantes conhecem ; mas que naõ podiam ser entendidos por homens, cujos
estudos, e applicaçaõ se tem dirigido a matérias mui differentes, e alheias
deste propósito.
Os lusitanos estavam
colocando em prática, ao pé da letra, a norma “UTI POSSIDETIS, ITA POSSIDEATIS” (quem
possui de fato, deve possuir de direito) que defenderam no Tratado de Madrid em 1750. De um lado
foi bom para o poder lusitano. Mas este se acomodou com esta medida e se fechou,
física e mentalmente, por um rosário de fortes distribuídos ao longo de toda a
costa e nas margens dos seus rios navegáveis. Certamente dava uma trégua para a
exploração da Natureza, transformando-a num grande parque cercado e misterioso.
Garantia, assim, a defesa dos índios e dos grandes latifundiários. Mas iniciavam
ali os problemas. A escravidão interna era legal. Andava solta, como ainda acontece em setembro
de 2012, sendo praticada por estes latifundiários e pelos aventureiros
lusitanos. Estes aventureiros lusitanos podiam praticar qualquer crime. A
impunidade era lhes garantida no interior deste grande parque cercado e
misterioso. Contanto que não atingissem o poder do Estado ou questionassem a
política colonial. Para tanto a discussão das funções - das projetas alfândegas
brasileiras - ganhavam um sentido vital e determinante. No interior destas fronteiras, o Brasil,
vigiado pelas alfândegas, dormia em berço esplêndido e infenso à uma nova
época.
Porém o pior problema
residia do lado de fora das fronteiras do Brasil. Época na qual se configurava outro
mundo no qual a indústria fazia fluir insumos, capitais, mão de obra e fazia circular
novos bens, produzidos pelas novas fábricas.
Fig. 10 – Os
negociantes de BOSTON, fantasiados de
indígenas invadiram os navios mercantes britânicos e jogaram, no dia 16 de
dezembro de 1773, ao mar o chá trazido
pelos ingleses da produção de suas colônias. Além de destruir o produto
comercial inviabilizavam a cobrança dos impostos arrecadados na alfândega controlada
pelos europeus. Com este ato os norte-americanos, provocaram uma série de
vinganças dos colonialistas, mas iniciaram o ciclo que culminaria na sua soberania.
Enquanto isto o mundo
havia aprendido a lição dos comerciantes de Boston, jogando ao mar os produtos
ingleses, controlados e taxados pelos colonizadores britânicos.
Após a Campanha de
Guerra Guaranítica - 1750 - o interior
do atual Estado do Rio Grande do Sul permaneceu o mesmo mistério para as
culturas extra ibéricos. Em geral os militares possuem ótimos cartógrafos. Mas
eram segredos de Estado e das províncias coloniais, administradas por
presidentes militares
Fig. 11 – ALFÂNDEGA de LISBOA no início do século
XX.
Competia
ao Estado Brasileiro, em gestação, encontrar um ponto de equilíbrio entre as
forças antagônicas de uma terra de ninguém, na qual todos os portos não só
abertos, mas livres. Do outro lado estava o modelo lusitano das fronteiras
herméticas administradas rotineiramente por eruditos rábulas.
O editor
não permanecia nesta dialética binária reduzida a duas forças antagônicas. Para
ele o equilíbrio homeostático - de um projeto de um Estado Brasileiro,
diferente do lusitano – estava no argumento de que “he esta a mais importante differença entre o homem que segue a rotina
do que acha estabelecido na practica; e o sábio, que applica os principios
geraes da sciencia ás circumstancias do tempo”. (Correio Braziliese nº 52, setembro de 1812,
página 425). Certamente os postulados Iluministas estavam surtindo efeito e
caminhando para a vitória da Razão sobre as crenças místicas que sustentavam o
“Ancien Règime” do qual uma amostra
havia se refugiado na América, diante das tropas napoleônicas.
Fig.. 12 – O prédio
atual da ALFÂNDEGA da CIDADE do PORTO
Numa visão panorâmica e
retrospectiva - de 200 anos da História brasileira - é necessário reconhecer
que a década 1812-1822, foi aproveitada exaustivamente para discutir e projetar
esta passagem sem traumas, sem grito e
sem recaídas coloniais. Certamente o texto do Correio Braziliense, escrito,
impresso e distribuído a partir de Londres, é um dos testemunhos deste período.
O seu redator, como jurista formado por Coimbra, soube falar contra a sua
própria classe e questionar os limites das suas competências. Neste documento soube
evidenciar as resistências, os entraves e os problemas que esta mudança
provocaria. Tudo isto no cenário dos tropeços de uma corte parada no tempo e de
uma mentalidade despreparada para os novos tempos.
FONTES
GOLIN,Tau. A Guerra Guaranítica: como os exércitos de Portugal e Espanha
destruíram os Sete Povos dos
jesuítas e índios guaranis no Rio
Grande do Sul. (1750-1761). Passo
Fundo : PUF e Porto Alegre : UFRGS,
1998, 624 p.
CORREIO
BRAZILIENSE -Vol. IX nº 52 pp.405-568-
SETEMBRO de 1812
ALFÂNDEGA
de LISBOA em SETEMBRO de
Friederich Wilhelm Heinrich Alexander Feiher von
Humboldt (1769-1859)
UTI
POSSIDETIS, ITA POSSIDEATIS (quem possui de fato, deve possuir de direito)
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